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Tuesday 7 August 2007

ZITA SEABRA (1) 1988

Como as memórias são curtas, publica-se a seguir um artigo meu escrito em Novembro de 1988 sobre o primeiro livro da Zita Seabra. O que penso sobre o seu segundo livro, Foi Assim, e algumas conclusões sobre os dois, irei escrever dentro de poucos dias.

Por agora, e para os mais jovens convem lembrar das 'coisas' da década de 1980.


O NOME DAS COISAS

(Artigo publicado no semanário O DIABO de 29 de Novembro de 1988)

No próprio dia da publicação comprei e li o livro de Zita Seabra, O Nome das Coisas. Li o livro e fiquei na mesma! 0 que escreveu Zita Seabra näo nos traz nada de novo, nada que não tenha sido já dito ou escrito noutros lugares. Tem a publicação, porém, a virtude de reunir convenientemente os argumentos da ex-deputada no seu contencioso com a direcção do PCP. Assim temos facilmente à mão a corroboração do que escrevi a semana passada, a saber: que Zita Seabra não deixou de ser comunista e que o que ela quer é um PCP melhorado, modernizado e mais eficaz. 0 que ela lamenta é que o presente estado avançado de esclerose do partido enfraquece a causa do comunismo e da Esquerda em Portugal. Esta é a posição declarada dela! Se estiver a ser sincera então Zita Seabra revela-se bastante menos inteligente do que se alega por al.

E isto porque, apesar de ainda se considerar comunista, Zita Seabra reúne no seu livro citações da imprensa soviética contendo admissões gravíssimas. Entre estas figuram as seguintes:

• 0 facto que grandiosas obras em Moscovo e outros sítios foram realizadas com mão-de-obra de prisioneiros de guerra soviéticos libertados ou fugidos de campos de concentração nazis, os quais eram enviados para trabalhos forçados por se terem ‘deixado’ fazer prisioneiros... Os barcos que circulam nas águas de determinados canais navegam por cima dos ossos de centenas de milhares de infelizes que fizeram os canais a mão sob o olhar atento dos guardas armados. (p. 140).

• Pormenores sobre o destino da maioria dos revolucionários bolcheviques, devorados (como acontece habitualmente) pela própria revolução. A Enciclopédia Filosófica Soviética, admite a ex-deputada, acaba de revelar uma lista verificada dos membros do Comité Central do PCUS vítimas de repressão, mortos ou que se suicidaram, entre o XVII Congresso (1934) e o XVIII Congresso (1939). Tiveram trágico destino 98 dos 139 membros efectivos e suplentes do Comité Central do PCUS. (p. 140).

• A tragédia de Kuropaty, perto de Minsk onde foi descoberto um lugar de execuções maciças. Nesse lugar, de 1937 a 1941, foram fuziladas e enterradas, todos os dias, centenas de pessoas. 0 total calculado pelas autoridades soviéticas atinge o número de 102.000 (p.141).

E, mais! Zita Seabra reconhece que estes factos eram conhecidos há muito tempo pelos ‘inimigos do partido’ Perguntamos: Então, quais serão os atractivos do comunismo? Qual a superioridade do ‘socialismo real’ sobre o capitalismo ou o que os comunistas gostam de chamar ‘a social-democracia .de direita’? É aqui que reside o essencial da questão. E é porque Cunhal e os seus homens percebem isso que eles perseguem a ex-deputada. Os crimes do estalinismo (e do pós-estalinismo) não causam nenhuma indignação no seco coração de Cunhal. 0 que ele sente é só e simplesmente a inconveniência de revelar esses factos.

Os Soviéticos nunca pouparam comunistas estrangeiros
0 comunismo só tem qualidades atractivas enquanto vestido de roupagens que escondem a sua fealdade essencial. Antes das revelações de Gorbachev quanto ao atraso e ineficácia da economia soviética, o militante simplório era facilmente consolado pelos dirigentes. Até admitiam ‘urna certa falta de liberdade e alguma repressão’ nos países de leste ‘contra o inimigo de classe’ porque essas eram necessárias para garantir as tais conquistas sem preço:
1. A vitória triunfante do socialismo, que na URSS já estava próxima da fase do próprio comunismo onde a exploração do homem pelo homem teria deixado de existir.

2 O fim desses flagelos característicos do capitalismo, a saber:
• a inflação
• o desemprego
• a prostituição
• a criminalidade
• a droga
• o alcoolismo

3. O florescimento da criatividade cultural e científica.
4. Serviços sociais (de Saúde e de Educação) de alto nível.
5. Alta produtividade e inovação tecnológica.
6. Um campesinato contente e produtivo labutando alegremente nos campos colectivizados.

Através das revelações de Gorbachev os militantes comunistas ficaram a saber que nada disto era verdade! Ficaram a saber, afinal, o que os não-comunistas (os desprezados leitores das Selecções do Reader’s Digest) sabiam já há muito tempo.
Gorbachev, ao revelar a outra face da lua, não estava certamente a pensar nos partidos comunistas estrangeiros. Estava, sim, a pensar no grande público internacional não-comunista. Gorbachev sabia que esse público ficaria bem impressionado com a candura das auto-críticas do dirigente soviético. Porque esse público já sabia que o comunismo não constituía a utopia em que Zita Seabra até há pouco tempo piamente acreditava. 0 que o dirigente soviético, sendo um homem inteligente, pretendia era modificar na medida do possível a péssima irnagem que tem o regime e a sociedade soviética no Ocidente, e que um estilo de propaganda caduco não conseguia mais esconder.

Pretendia criar em Margaret Thatcher, em Ronald Reagan, e nos outros dirigentes ocidentais uma impressão favorável e uma disposição mais amigável para com a URSS. E conseguiu. Este objectivo era muito mais importante do que o risco de semear confusões no meio dos comunistas ocidentais. E isto porque Gorbachev precisa de implementar projectos de redução nas despesas militares, essenciais para permitir algum melhoramento nas baixas condições de vida da população soviética. Como disse Sakharov nos Estados Unidos, a URSS tem actualmente mais elementos nas forças armadas do que quaisquer três países ocidentais em conjunto. Só uma détente palpável nas relações internacionais permitiria essa redução. E o melhoramento da economia soviética é tão indispensável para a sobrevivência do regime como para a sobrevivência da URSS como grande potência.

Quer isto dizer que para Gorbachev e a sua estratégia os reflexos desagradáveis para os ‘partidos irmãos’ são pouco significativos. A URSS nunca hesitou quando parecia necessário sacrificar comunistas, nacionais ou estrangeiros. A história está plena dos cadáveres de ‘partidos irmãos’ e dos seus militantes imolados no altar dos interesses imperialistas de Moscovo: desde o PC espanhol, ao polaco ou ao cubano. Estes casos são meros acidentes de percurso.

No caso de Portugal, Cunhal sabe que a sua sobrevivência depende do isolamento de Zita Seabra. 0 ideal para esta direcção do PCP seria empurrá-la para fora da Esquerda, para que ela e os outros dissidentes não conseguissem o apoio de Moscovo. Mas Gorbachev não está preocupado nem com Cunhal nem com Zita Seabra. Se a sua politica vencer, surgirão mais cedo ou mais tarde outros ‘amigos da URSS’ tanto em Portugal como nos restantes países não-comunistas.

De qualquer modo, Cunhal está, a médio prazo, condenado; e, quando se diz Cunhal entende-se a sua equipa, por que ele próprio, pela natureza das coisas, não pode reinar muito mais tempo. Zita Seabra, como ser politico que é, tem várias opções. Uma é a de prosseguir na via de comunista profissional e era capaz de ter algum sucesso. Outra alternativa, intelectualmente mais honesta, era de escolher o longo caminho da autocrítica às suas próprias posições ao longo dos anos e às do seu partido. Pode não haver no passado do PCP nem gulags nem fuzilamentos em massa (mas só encobrimento dessas monstruosidades cometidas por outros!).

Mas haverá, talvez, outras culpas relacionadas com a história de Portugal durante muitas décadas deste século. E isto porque não há acção sem reacção. Podemos, com alguma justificação, perguntar: Se, sem o fanatismo pró-soviético do PCP, o Estado Novo teria sido, a seguir a Segunda Guerra Mundial, tão ditatorial? Ou se, sem a actuação do PCP como filial estrangeira do Ministério de Negócios Estrangeiros Soviético, teria havido a polarização dos campos quanto a questão colonial e a tragédia que se seguiu?

O espírito do mal
O que Zita Seabra devia colocar como questão é, afinal, quais as realizações benéficas do comunismo. Tanto no Leste como em Portugal?

É perfeitamente plausível que a Rússia, sem a Revolução Bolchevique de 1917, sem gulags, sem ditaduras do proletariado, fosse hoje uma grande potência industrializada e moderna—até democrática. Não aconteceu a industrialização, a modernização—e, ate, a democratização—do Japão sem qualquer intervenção de partidos socialistas ou comunistas? E quanto a Portugal podemos colocar semelhante pergunta. O que de bom tem trazido o PCP ao nosso país? A existência desse partido impediu ou travou a democratização que podia ter acontecido, talvez com Norton de Matos, em 1948?

Nem foi o PCP que acabou com o Estado Novo mas sim um movimento eminentemente sindicalista de militares. A melhoria dos níveis de vida e de cultura dos portugueses, já visível antes do 25 de Abril, não foi certamente obra do PCP.

Afinal, o que valeram tanto sacrifício, tanta militância, tanta obediência? A tragédia de Zita Seabra, como de todos os comunistas dissidentes que deixam inacabada a sua reconversão, é a de ter adorado deuses com pés de barro sem o perceber.

E Cunhal? Não será ele também uma figura trágica?
Não no rnesmo sentido. Zita Seabra está chocada com os crimes no leste e os atropelos a justiça cometidos pela direcção de Cunhal. Porque, para ela e outros cornos ela, o comunismo é um ideal—o tal deus com pés de barro. Cunhal, pelo contrário, não está chocado com os crimes da União Soviética, e a sua revelação constitui urna simples inconveniência. Para Cunhal o comunismo não é um ideal. Tornou-se uma doença psíquica, que antigamente teria sido classificado como um caso de possessão. Reagan, quando falou no império do mal, estava a referir-se a urna grande verdade. Corno podemos comemorar as vitimas do nazismo (que durou 14 anos) com sinceridade, ignorando as vitimas (quiçá mais numerosas ainda) dum regime que dura há setenta anos? Quem se indigna selectivamente corre o risco de ver postas em causa as suas motivações. No caso de Álvaro Cunhal, não é de facto um deus de pés de barro que ele adora mas sim o espírito do mal. E é isso que está patente no seu discurso, quando aparece nas câmaras de televisão. É isto que a maioria do povo português pressente. Estão afinal a ver e ouvir o apologista e o encobridor do gulag.