Ayaan Hirsi Ali, autora de Infidel, Free Press, New York, 2007
Ayaan, filha de Hirsi que era filho de Magan: ainda em criança sabia recitar os nomes dos oito séculos de antepassados da linha paterna. Se não memorizava a bem, então era a mal e sempre às mãos da implacável avó. Lembra o Livro de Génesis e o recital dos descendentes dos patriarcas. Quando Ayaan conta a história da sua infância em Mogadishu na Somália e mais tarde na Arábia Saudita, na Etiópia e no Quénia, somos transportados para a época bíblica onde a tribo e o clã estão omnipresentes e a vida individual não conta. Apesar de haver camiões e carros, telefones e rádios, é um mundo muito distante do nosso.
É um mundo onde a mulher é totalmente subordinada ao homem; onde a sua virgindade é garantida com a faca através da mutilação genital em criança; onde é obrigada a casar com um homem escolhido pelo pai; onde uma palavra ou um olhar trocado com um homem que não seja pai ou irmão, pode trazer a pena de morte. Um mundo onde a mulher violada é castigada e não o violador. Um mundo onde as mulheres, desde uma tenra idade, terão que tapar o rosto e o resto do corpo, para não provocar os (aparentemente) incontroláveis apetites dos homens. Um mundo em que aprender os dogmas do Islão consiste em decorar o Alcorão em Árabe, muitas vezes sem conhecer essa língua. Um mundo em que uma das doutrinas decoradas é do direito do marido de bater na mulher.
Foi esse o mundo em que Ayaan cresceu. Ela conta tudo, com uma candura quase compulsiva, não omitindo nada. Conta os horrores, mas também as benesses, Lembra-se da tirania da família e do clã, mas também da solidariedade e generosidade deles em tempos difíceis. Fala da ternura dentro da família, ternura que, apesar, da crueldade, também existia. Fala, sobretudo do pai que adorava, e que relativamente ao obscurantismo generalizado na Somália, era um homem moderno e esclarecido, e que queria que a filha tivesse acesso ao ensino. Ele não concordava com a mutilação genital das raparigas mas a avó, na ausência dele, obrigou a mãe a cumprir com a tradição. Tanto a Ayaan como a irmã foram excisadas, com consequências lamentáveis para a irmã. O pai era um político perseguido pelo regime de Siad Barré, e muitas vezes ausente do lar, ou fugido ou na prisão. Dele ela recebeu os primeiros exemplos de militantismo político e uma certa introdução à política. No entanto o modernismo do pai era muito relativo e foi ele que, mais tarde, obrigou-a a casar e provocou a fuga da Ayaan de África.
A política repressiva de um comunismo africano na Somália seguido por mais de uma guerra civil, a fuga dela com os irmãos e a mãe para a Arábia Saudita, e mais tarde para a Etiópia e o Quénia, forneceram oportunidades para conhecer outros povos e outros costumes e, sobretudo, de comparar a vida dos muçulmanos com a dos povos cristãos. Como Ayaan, desde pequena infância fora um ser cheio de curiosidade, todas as experiências a fizeram reflectir. Observava, apontava na memória e reflectia. Observou a terrível animosidade e ódios entre os diversos grupos e clãs, o não menos intenso desprezo de todos os somalis para com os etíopes e os quenianos. Por estes não serem muçulmanos? Só em parte, porque o desprezo e o ódio aos árabes, especialmente os de Meca onde Ayaan e a família se refugiaram durante algum tempo, são constantemente expressos pela mãe, muito consciente do seu estatuto social entre os somalis.
A autora tem o dom de narrar os pormenores da vida quotidiana com a mesma objectividade que dedica aos grandes acontecimentos das fugas como refugiada de um país africano, para outro, as mudanças de uma escola e uma língua para outras. Conta sem inibição a sua conversão para o islamismo militante da irmandade muçulmana e o curto percurso pelo fundamentalismo. Tapou a cara e o corpo, dedicou-se aos estudos corânicos, ansiosa para uma vida espiritual e uma orientação ética certa e coerente. A sede da Ayaan lembra as crises espirituais das adolescentes cristãs atraídas para a vida religiosa. Ela descreve o seu combate com a fé e a tradição com tal vivacidade que o leitor esquece a sua própria cultura e consegue identificar-se com a jovem muçulmana.
É esta identificação provocada pela autora o grande mérito do livro. Quando foge do casamento imposto e finalmente chega à Holanda, continuamos a partilhar as reacções da Ayaan face ao novo mundo livre que ela encontra. Partilhamos o seu espanto perante a ordem e a civilidade das pessoas, a gentileza de gente desconhecida, a pontualidade e limpeza dos transportes, o facto que tudo funciona, depois da anarquia, desordem e arbitrariedade da vida que ela conhecia em África.
Afinal o percurso da Ayaan é a passagem da vida fechada, a closed society, da vida tribal para a sociedade aberta da democracia liberal do mundo industrializado. Muitos imigrantes têm essa oportunidade mas a maioria não tem nem a inteligência nem a curiosidade da Ayaan e acabam por recusá-la, e alguns de tentar destrui-la. Ela passa maus momentos na Holanda e também triunfos, do estatuto de refugiada ao de cidadã e deputada no Parlamento holandês. Trabalha em vários ofícios desde operária fabril à mulher de limpeza e à intérprete. Tem ampla oportunidade para observar os outros refugiados da sua terra, sobretudo as mulheres e verifica que a grande maioria fica no gueto, fechadas na concha criada pela sua religião. E chega à conclusão que é a política do multiculturalismo da esquerda europeia que reforça os mais retrógrados aspectos do islão. A jovem africana recusa a concha. Trabalha e estuda, estuda e trabalha. Conhece e convive com os holandeses. Consegue com imenso esforço superar todas as dificuldades e acaba por entrar na melhor universidade do país para estudar Ciências Políticas. Está determinada a conhecer a razão de ser deste mundo novo. Quer saber como os europeus conseguiram sair do obscurantismo. Quer estudar a Idade das Luzes e os filósofos. Quer saber o que é o liberalismo.
Sobretudo Ayaan quer falar em nome da mulher muçulmana, quer denunciar a sua situação de oprimida. Ao pôr em prática o que sente ser a sua vocação Ayaan torna-se um alvo a abater. Theo Van Gogh, o produtor de um filme escrito por ela sobre a sujeição da mulher muçulmana, é assassinado e ela ameaçada de morte. É empurrada para a clandestinidade na livre Holanda e finalmente para fora do país. O livro acaba com a chegada da Ayaan nos Estados Unidos, país que ela, em África, tinha odiado como opressor imperialista.
A autobiografia de Ayaan Hirsi Ali é um case study da problemática de toda uma geração de jovens muçulmanos confrontados com a contradição entre dois mundos: o mundo da liberdade e o mundo da servidão. A autora é uma verdadeira heroína dos nossos tempos. A sua autobiografia devia ser lida por todos os adolescentes perplexos perante o mundo moderno e todos os adultos confusos com os lugares comuns do multiculturalismo.