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Friday 5 October 2007

PREFÁCIO Á EDIÇÃO ON-LINE

Misérias do Exílio. Ós Últimos Meses de Humberto Delgado

Ao longo dos últimos quarenta anos, com intervalos de sensivelmente uma década, tenho tido motivos para revisitar os anos que passei no norte de África entre 1962-66. Quando percorro esse caminho pela memória, apoiada na documentação que consegui acumular, fico cada vez mais impressionada. Ao reler o que escrevi nos anos oitenta sobre O Bando de Argel, e num segundo livro, As Misérias do Exílio, nos anos 90, a minha convicção aumenta de que os acontecimentos de Argel revelaram e continuam a revelar umas profundas verdades sobre a natureza da oposição anti-salazarista. Com efeito, ajudam a explicar a longevidade do Estado Novo. Para quem soubesse interpretá-los esses acontecimentos foram um pré-aviso de dramas futuros. Deviam ter servido como presságio do que viria a acontecer mais tarde depois da queda da ditadura.
É um lugar comum dizer que para compreender o presente temos que entender o verdadeiro significado do passado. Toda a gente concorda mas, na prática muitos ignoram. Se tivesse havido entre 1966 e 1974 um verdadeiro interesse pelos acontecimentos de Argel da parte dos opositores ao salazarismo, talvez não tinham acontecido algumas das desgraças de 1974-75 e a persistente hegemonia até hoje de uma esquerda velha, caduca e desacreditada. Não houve. Ninguém quiz falar desse periodo. Tudo foi varrido por baixo do tapete. A questão entrou no longo rol de tabus: temas que não podiam ser abordados para não perturbar a ‘unidade antifascista’ e hoje precisam de ser escondidos para preservar o status quo. Até os mais recalcitrantes dos maoistas nos conturbados tempos depois do 25 de Abril não queriam ouvir falar em acontecimentos que reflectiam tão pouco crédito nos protagonistas. O muro de Berlim pode ter caído, e os países da chamada ‘democracia popular’ podem ter corrido com os seus regimes comunistas, mas em Portugal em muitos meios—especialmente da comunicalão social e da universidade—continuam de pé os velhos ídolos com pés de barro. Muita gente continua empenhada em esconder a verdade. Não me refiro só ao mistério que rodeia o assassinato de Delgado, embora haja pessoas ainda vivas que não querem levantar o véu sobre o crime.

Independentemente do problema de saber quem mandou matar o general, e seja quem fosse o mandante, o que os acontecimentos de Argel revelam é a incompetência e a patética infantilidade de todos e, pior, a falta de moral de alguns dos actores no drama que se desenrolou na África do Norte. Foi, em boa verdade, um teatro onde todas as tendências da oposição tiveram uma oportunidade, que não existia em Portugal, para mostrar o que valiam. Relendo hoje os documentos tanto de Delgado, como dos comunistas, como da extrema-esquerda, ficamos com a sensação desconfortável de ver e ouvir bonecos de cartão a desempenhar papeis numa farsa e a disputar poderes imaginários no palco dum teatro do absurdo onde não é fácil distinguir entre o cómico e o trágico. É por isso que os comunistas inventaram histórias mirabulantes e o próprio Álvaro Cunhal aifrmou que os documentos eram ‘apócrifos’.

Os actores na peça, afinal, um grupo de quarenta criaturas, a maioria sem preparação política ou militar, e todos divididos entre si, a brigaram sobre o sonho de um confronto com Salazar, a Espanha franquista e a as forças da NATO todos juntos. Na realidade, só Cunhal e os comunistas sabiam que tal projecto seria uma loucura, nunca permitido pelos seus chefes no Kremlin. Mas tinham que preservar o mito do seu empenho revolucionário a todo o custo. Delgado, os seus apoiantes e os maoistas, impulsivos todos eles à sua maneira, viviam no mundo de Sancho Panza.

As divisões políticas e as impotências que observamos no Portugal de hoje derivam em larga medida da persistência obstinada de um mito que alimenta as hostes da esquerda e intimida e culpabiliza a castrada direita. Poucos compreendem realmente o passado. Nem querem compreendê-lo, como ficou amplamente demonstrado durante o famigerado concurso para o maior português; cmo fica demonstrado todos os anos com a benevolência estendida à ‘Festa’ do Avante. O ‘politicamente correcto’ proíbe uma discussão desapaixonada do salazarismo, como impede igualmente qualquer pergunta inconveniente sobre a impotência, baixo nível e em última análise o falhanço da oposição democrática. A continuada influência em dos comunistas alguns sectores cruciais da sociedade portuguesa depende do mito de uma heróica resistência à uma feroz ditadura. Podem os comunistas não apreciar os oposicionistas não-comunistas e não se perderem m de amores pelos herdeiros da Primeira República, mas estão todos de mãos dadas quando se trata de exagerar ao ponto de blasfémia os pecados da ditadura. Escrevo a palavra blasfémia sem ironia. Porque é evidente para um observador desapaixonado que em comparação com as sangrentas tiranias que foram os regimes comunistas ou os actuais infernos das ditaduras do terceiro mundo o salazarismo constituía uma ditadura bastante benevolente. Pretender o contrário é realmente uma blasfémia contra o sagrado dever de respeito pela verdade histórica e uma traição às centenas de milhões de mortos. Censura, partido único, algumas centenas de presos políticos, práticas típicas de um estado policial, obscurantismo no ensino, uma burocracia sufocante e muitas vezes prepotente, ausência dos normais direitos cívicos de protesto e manifestação pacíficas, estatuto subordinado da mulher: todos esses desafios aos princípios liberais existiam no Estado Novo e tinham fatalmente que culminar num desastroso confronto quando eclodiram as revoltas coloniais. Mas um regime criticável e em muitos aspectos condenável não é necessariamente um regime fascista. Confundir categorias políticas leva ao esvaziamento de sentido. É a arma do demagogo, do terrorista do verbo. Na escola é antipedagógico. Na política serve como instrumento de chantagem. É necessário para promover o seu estatuto heroico que os comunistas exagerem vergonhosamente os malefícios do antigo regime. Pena é que muita gente aceite a grande mentira.

É por isso que tudo que tenho escrito sobre Argel ao longo de quarenta anos tem sido bastante mal recebido. Fui avisada continuamente , até hoje, que apesar de minha narrativa ser verdadeira, seria sempre inconveniente. Até os anos 80, disseram-me que só podia ajudar os nostálgicos do fascismo. Hoje dizem-me que estou a prejudicar o bom nome da ‘resistência’ e ‘ajudar a reacção’. Houve só um breve periodo, nos fins dos anos setenta, quando o ambiente era diferente, a comunicação social mais diversificada e havia muito mais debate do que existe hoje. Era o tempo da Aliança Democrática. O meu primeiro ensaio sobre o ‘caso Delgado, foi um best-seller e venderam-se muitos milhares do livro em seis meses. O livro actualmente posto on-line, Misérias do Exílio, cuja apresentação e conteúdo documental é indiscutivelmente superior à primeira versão foi boicotado; não recebeu qualquer promoção ou publicidade e quantos exemplares foram vendidos não sei porque até hoje o editor não me apresentou quaisquer contas.
Foi pena—ou talvez não. Porque agora existe a World Wide Web, e uma audiência potencialmente muito maior e, sobretudo, toda uma nova geração de leitores. E se não tivesse havido o boicote, eu talvez não tinha tido o incentivo para colocar o livro on-line.
O valor histórico do livro consiste sobretudo na reprodução na totalidade de todos os documentos na minha posse referentes aos acontecimentos narrados. A primeira edição, por pressão de tempo, só trazia extractos de alguns. Também esta edição reproduz alguns comentários curiosos incluindo um de Álvaro Cunhal e outro de Pedro Ramos de Almeida. São curiosos porque descaradamente mentirosos, revelando mais uma vez a natureza dessa famigerada ‘superioridade moral dos comunistas’. Cunhal falou de ‘documentos apócrifos’. Ramos de Almeida mentiu descaradamente sobre o meu passado político e alegada pertença ao Intelligence Service. Quem mente tema a verdade. Porquê? A verdade sobre Delgado ainda está para provar e talvez nunca será conhecida. A verdade sobre a moralidade e as características de muitos opositores ao Estado Novo já se sabe. Resta agora tirar as conclusões. A minha esperança é de que os textos publicados neste site sejam de alguma ajuda nessa penosa tarefa.
Algures no Alentejo, 15 de Setembro de 20007

O texto integral encontra-se em:

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